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Uma pequena ONU em Atenas
Francisco Ruivo | C24 | ETPOA | Atenas, Grécia
Uma pequena ONU em Atenas

Sim, sou eu. A primeira pessoa que nos mais de dois mil anos de existência de Atenas conseguiu passar mais de três meses na cidade sem pisar a Acrópole.

Eu acredito, ou quero acreditar, que parte da intenção do programa INOV Contacto é obrigar os participantes a sair da sua zona de conforto. Nesse aspeto, a presente situação obriga-nos, impreterivelmente, a lidar com uma realidade completamente nova, num ambiente desconhecido.

O meu caso não é diferente. Eu cheguei a Atenas no fim de fevereiro e, duas semanas depois, os 9m2 do meu quarto ganharam uma nova função: ser o meu escritório.

No entanto, eu não nego que estou numa situação melhor do que a maioria dos meus colegas INOV espalhados pelos quatro cantos do planeta, ou mesmo dos meus vizinhos do prédio, com os seus trabalhos e estudos postos em causa.

A Grécia tem sido apontada como um exemplo pela imprensa internacional. Três meses depois do primeiro caso registado, que coincidiu com o meu primeiro dia de trabalho, o país conta com menos de 3000 casos e 171 mortos. Cifras muito inferiores à maioria dos países que nos são mais próximos. Embora os números sejam mais comedidos, a realidade do dia-a-dia não difere tanto. Da minha janela passei meses a ver ruas desertas e a ter como aventura semanal a visita ao supermercado com as trocas de olhares cúmplices com os demais transeuntes.

Visto de forma mais fria, poderíamos dizer que os últimos meses têm sido uma grande experiência sociológica. Quando vim para a Grécia, tanto mais sendo o único estagiário no país e tendo a barreira da língua, tinha a intenção de me inserir num ambiente o mais internacional possível. Com isto em mente, aluguei um quarto num prédio no centro de Atenas, onde existem pessoas provenientes de quatro continentes e nenhum grego. Temos gente do Azerbaijão, Tunísia, Israel, México, Chipre, Turquia, Itália, Índia e França. Todos eles com idades compreendidas entre os 22 e os 34 anos e em fases diferentes da vida, desde estudantes de Erasmus, a candidatos a PhD e até trabalhadores. Embora não partilhemos o apartamento, o telhado do prédio serve como refúgio dos pequenos apartamentos e como única possibilidade de usufruir do sol de Atenas, sempre com o monte Licabeto de fundo, onde as horas livres são passadas e as novidades sobre a Covid-19, em cada um dos países, é discutida.

Com esta amostra tão plural de gente jovem, podemos extrapolar algumas conclusões e ver as diferentes reações ao confinamento. A primeira conclusão, e a mais evidente, é o importante papel da rotina na manutenção de algum equilíbrio emocional. Os estudantes com quem convivo viram a sua rotina desaparecer e ser substituída pela total ausência de horários e obrigações. Para gente mais jovem ou com menos maturidade, isso implica ir dormir quando o sol já bate nas cortinas e acordar próximo do lusco-fusco. Visto de fora, parece complicado manter a sanidade mental numa vida como esta, onde o sol é uma miragem e todos os dias são fim de semana. O ócio só sabe bem como recompensa pelas obrigações cumpridas e, sem obrigações, nem o ócio é igual, mais ainda o caseiro. Não estamos desenhados para uma vida de improdutividade.

Quem trabalha e se vê obrigado a cumprir horários, teve uma reação diametralmente oposta a este confinamento, tentando aproveitar ao máximo o tempo livre que ganhou com a ausência de deslocações para o escritório. Fazer pratos mais elaborados na cozinha, fazer mais desporto e levar uma vida saudável, foram a norma aqui em Ippokratous 161A entre a massa trabalhadora. 

Neste melting pot cultural também convivem diferentes religiões e quis o destino que o Ramadão coincidisse em pleno com o confinamento. Nem tudo haveria de ser negativo nesta pandemia e o jejum e a obrigação de rezar cinco vezes por dia, não sendo tarefas fáceis, foram em muito facilitadas pela ausência de tentações que as ruas de Atenas costumavam oferecer. Entre quatro paredes celebramos, sempre todos juntos, a Pascoa católica, a ortodoxa e a judaica, o Eid Mubarak e o Purim.

Eu gostaria de pensar que este pequeno prédio, no centro de Atenas, é uma representação, em pequena escala, do que vai ser a realidade do nosso planeta nos meses vindouros. A perceção de que estamos todos no mesmo barco, de que a pandemia afeta a todos por igual e de que é pela via da entreajuda e da solidariedade que conseguiremos minimizar os inevitáveis contratempos que estão na incerteza do futuro. Numa altura em que as tentações isolacionistas aumentam e o mundo que parecia infinito volta a parecer mais pequeno, cabe-nos a nós, no nosso dia-a-dia e com pequenas ações, quebrar esses muros que se voltaram a erguer.

Podem ser as saudades, e há uma primeira vez para tudo, mas não resisto a citar Rui Veloso: “é mais o que nos une do que aquilo que nos separa”.

Imagem de destaque cedida por: unsplash.com
 
Nota: O artigo foi elaborado em maio de 2020
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Created By: Francisco Pais Pitta de Lacerda Ruivo
Published: 12-08-2020 14:37

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