Skip to main content
   
   
Go Search
Extranet InovContacto
  

Extranet InovContacto > Visão Contacto > Posts > Uma Quimera Africana
Uma Quimera Africana

João Reis | C24 | Activus Accountig Services, Sociedade Unipessoal, Lda | Maputo | Moçambique

Quimera (qui·me·ra) – Coisa resultante da imaginação. = Fabulação, fantasia, ilusão ≠ realidade. Esperança irrealizável = Utopia.

 

Esta é a palavra que melhor define a minha curta passagem por Moçambique, interrompida de rompante, por razões conhecidas de qualquer pessoa que esteja neste mundo no ano de 2020. A fotografia acima foi tirada na tarde de 29 de Fevereiro, na zona do Mercado Laulane, mas é preciso recuar até à noite de dia 27 para iniciar esta história.

 

Naquele dia, uma quinta-feira, mudei-me para aquela que deveria ter sido a minha casa durante sete meses, juntamente com a Ana e a Lia. Por volta das dezanove horas, depois de apanhar um txopela à saída do trabalho, já tínhamos a chave na mão, a satisfação na cara e a sensação de que aos poucos tudo se estava a alinhar, ainda que este último palpite tenha saído um pouco ao lado, e estávamos prontos para seguir para a Associação dos Músicos Moçambicanos, indiscutivelmente o melhor sítio para estar numa quinta feira ao final de tarde, início de noite.

 

Depois de sorteados os quartos e arrumadas as malas, pouco ou nada demorou até percebermos que a casa, que aos poucos começávamos a ocupar, tinha já inquilinos que lá habitavam desde muito antes da nossa entrada, e que não tinham intenções de alterar as suas rotinas devido à nossa presença, não fossem eles a espécie mais resiliente que existe: diz-se que nem um desastre nuclear seria suficiente para dizimar tal família de moradores, por isso três estagiários portugueses também não deveriam ser capazes de fazê-lo. Esta espécie, vulgarmente conhecida como “barata”, habitava principalmente na cozinha e casas de banho da casa, e pela quantidade e tamanho dos bichos, diria que estávamos perante uma linhagem de três ou quatro gerações destes orgulhosos moradores do número 281 da Avenida Julius Nyerere.

 

Depois de confrontados com esta realidade de partilha de casa, decidimos que tínhamos agora mais um motivo para irmos rapidamente para a Associação dos Músicos: se antes queríamos beber uma cerveja para celebrar a entrada na casa, agora queríamos beber as cervejas em quantidade suficiente para esquecer a existência das baratas.

 

Chegados à Associação encontrámos quem nos esperava: os restantes estagiários portugueses, alguns que ainda não tínhamos conhecido e, depois de feitas as apresentações e as trocas de impressões iniciais, já todos estávamos contagiados pela atmosfera vibrante da música africana que, inevitavelmente, nos põe um sorriso na cara sem nos darmos conta. E, como em Maputo, a cultura impera, pelo menos para quem a procure, a festa que começa ao final da tarde na Associação dos Músicos é trasladada ao início da noite para a Associação dos Escritores, outro centro de cultura moçambicana, onde apesar de a atmosfera musical não ser tão vibrante, o clima de boa disposição é o mesmo.

 

Depois de, em jeito de procissão, trocando as velas por cervejas, fazermos a transição de um sítio para o outro, chegámos ao destino pretendido e sentámo-nos para jantar numa das poucas mesas desocupadas. Foi precisamente nessa mesa que começou a cadeia de acontecimentos que me levaria a tirar esta fotografia dois dias depois. Durante o jantar sentou-se ao meu lado uma mulher moçambicana, vendedora de rua, ofício comum entre as gentes deste país, onde a necessidade obriga a este estilo de vida. O seu nome era Érica, e por ter mais idade do que a necessária para ser considerada jovem, era tratada por Mamã Érica. Como grande parte do povo moçambicano, esta mamã tinha enormes dificuldades financeiras e o pouco dinheiro que ganhava nas suas vendas era usado para comprar comida, o que significa que a inexistência de vendas implicava a inexistência de comida. Depois de alguns minutos de conversa, alternando entre discursos alegres e relatos sofridos, eu e a Joana, estagiária INOV e compincha nesta quimera, sugerimos que a mamã nos fizesse um bolo para que nós o comprássemos, com o intuito de a ajudar monetariamente e, quem sabe, se convencêssemos os restantes portugueses a comprarem estas pastelarias, teríamos ali um modelo de negócio capaz de dar alguma consistência à carteira da mamã.

 

Apesar da nossa veia empreendedora ter inspirado esta ideia, que ainda hoje considero que poderia ter tido sucesso, a mamã teve uma sugestão indubitavelmente melhor: um almoço feito por ela, na sua casa, com a sua família, com direito ao ilustre bolo como sobremesa. Ao contrário do que talvez seria esperado, eu e a Joana não hesitámos em aceitar o convite e acertar todos os pormenores necessários para que o encontro fosse concretizado, nomeadamente perceber o nome do chapa que deveríamos apanhar e estação onde sair, que soou a algo como ‘expresso Nunzuti Mercado Laulane’. Pronúncia e fonéticas à parte, a verdade é que no sábado, dia 29 de Fevereiro, eu e a Joana estávamos a ser recebidos pela mamã e a entrar na sua casa. As condições do seu lar não nos espantaram: quatro paredes de cimento, com dois quartos, cozinha e casa de banho no exterior, ambas em pequenos barracões feitos de chapa. Dentro de casa encontrámos a sua família, de quem já muito ouvíramos falar no nosso fortuito encontro na Associação dos Escritores, a sua filha chamava-se Isa, ou mana Isa, e o filho da mana Isa era o Éric, bambino com um ano de idade.

 

Pouco tempo foi preciso para nos apercebêssemos do amor que a Isa nutria pelo Éric, que está retratado na fotografia que introduz este texto e que transborda através daquele sorriso sereno e sentido, sorriso esse que durou muito mais do que as cento e vinte cinco frações de segundo que o meu obturador demorou a fechar-se para captar aquele momento.

 

Feitas as apresentações e apresentados os manos, sentámo-nos à mesa para comer o banquete que a mamã tinha preparado para nós: frango com xima e salada, com direito a coca-cola e, claro está, ao tão esperado bolo de sobremesa.

 

Bastou conseguir tirar o bolo da forma e ver que não estava queimado para que a mamã começasse a celebrar e dançar, o quão bom é tão simples coisa ser motivo de tamanha felicidade, com a habilidade de espalhar sorrisos dentro daquelas quatro paredes de cimento. No entanto, e isto é um ponto fulcral nesta tentativa de ilustrar num texto, este episódio que foi vivido com poucas palavras, engana-se quem pensar que tal banquete é coisa normal por terras moçambicanas. A verdade é que, para que dois estagiários portugueses pudessem almoçar naquela casa, a mamã Érica gastou o dinheiro que tinha e que não tinha e vitimou uma das suas poucas galinhas, tudo para que aqueles dois jovens  portugueses se sentissem em casa e bem recebidos. Ainda que não tenha passado despercebido na minha consciência e na da Joana, visto que depois da refeição juntámos todo o dinheiro que tínhamos para agradecer o banquete, o ato de dar tanto, tendo tão pouco é revelador do carácter daquela mulher e do gosto que teve em receber aqueles dois forasteiros que, depois de uma tarde de diálogos e partilhas saíram daquela casa com um sorriso estampado nos lábios e uma profunda vontade de voltar. Apesar deste pequeno grande episódio acabar aqui, juntamente com as palavras que o descreveram, o meu contacto com a mamã e sua família perdurou enquanto estive em Moçambique e perdura até hoje, através de chamadas telefónicas, agora que estou em Portugal.

 

Curiosamente, mesmo depois de ter decidido regressar ao meu país, o momento em que realmente me apercebi do que estava a acontecer foi quando me despedi da mamã e da Isa e notei o olhar vazio e desalegre com que olhavam para nós, com uma expressão que nos dizia que era muito cedo para partir. Então percebi que, talvez, tudo tenha sido uma quimera, apenas possível de encontrar em dois rolos de 35mm e nas curtas memórias que guardei de Moçambique.

 
Share on Facebook
Created By: João Artur Lopes Reis
Published: 15-07-2020 13:00

Comments

There are no comments yet for this post.

 ‭(Hidden)‬ Content Editor Web Part ‭[2]‬

Visão Contacto