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Atascado

 

 

 

 

 

 

Pedro Caprichoso | C13

 

SECIL

Gabès  | Tunísia

 

Em Março experimentei uma tempestade de areia. Tudo começou a meio duma tarde e só findou dois dias depois. Por volta da uma, quando fui almoçar, o vento mostrava-se já mais forte do que o habitual e, quando saí da cantina, de volta ao gabinete, havia subitamente duplicado de intensidade, fazendo-se agora acompanhar por areia. Mas, foi somente a partir do meio da tarde, que a coisa começou a tomar proporções de calamidade. Mais do que a fúria do vento (que para avançar obrigava-nos a um ângulo de 45 graus), mais do que da areia (que nos deixava os olhos a arder e um sujo sabor a terra nos lábios), o que metia medo, mesmo, era o estrondo provocado pela sua passagem: espécie de corrida de fórmula 1 disputada sob intensa trovoada: o vento, dada a sua instabilidade, fazia lembrar as transmissões televisivas que sempre dão a passagem dos carros pela linha de meta, naquele repetitivo zoom zoom zoom; as chapas de zinco (da cobertura da oficina) ribombavam, frenéticas, à laia de trovões e a electricidade ia e vinha com a incerteza e o encandeamento dos relâmpagos.  Pelas 4 da tarde o dia virou noite.

 

O expediente já havia terminado, mas eu não fazia intenções de abalar do gabinete. «Vou antes esperar que o tempo amaine», ideia que R. logo me fez reconsiderar: “Estas coisas chegam a durar semanas… Fui informado de que uma árvore caiu na estrada a caminho de Gabès. Vamos por isso devagar, com cuidado, uns atrás dos outros, e vais ver que não há-de ser nada.” E assim foi: peguei no carro, liguei os médios e mantive-me ali sempre nos 50, salvo quando a tal árvore nos apareceu ao caminho. Então, liguei os quatro-piscas e, imitando os que seguiam à minha frente, fiz um pequeno desvio pela valeta. Um olho na valeta e outro na árvore. A informação de R. estava incompleta: a árvore lá estava tombada, sim senhor, mas tombada em cima dum carro. Somente pelo estado da viatura, diria que certamente alguém havia “patinado”; para mais tratando-se dum louage – espécie de intermédio entre um táxi e um autocarro – que sempre andam a abarrotar.

 

Para mim, a verdadeira calamidade começou, porém, quando cheguei a casa. Desde logo, antes mesmo de entrar na soleira da porta, ao notar que havia deixado roupa a secar. Estava bonita, estava! Era como se tivesse ido ao mar vestido, rebolado depois no areal e estendido as roupas de seguida. Tudo de novo para lavar. E depois, já dentro de quatro paredes, verifiquei que nem aí estava a salvo da areia. Eu, que não sou dado a muita luz, tenho quase sempre as janelas fechadas, fiquei de queixos caídos quando, ao pé destas, dei pela presença de pequenas ilhas de entulho, semelhante a Nesquick em pó. É impressionante a forma como a areia se consegue infiltrar por tudo quanto é lado. Não visse eu, com estes que a areia há-de comer, e não acreditava.

 

De manhã tudo na mesma: o vento continuava afoito e a areia tinhosa. O tempo que demorei a abrir o portão de casa foi suficiente para me voltar a sentir sujo. Abri-o, deixei o carro no exterior e voltei a fechá-lo. De volta ao carro, julgando-me, pelo menos por agora, livre da intempérie, meti a primeira e arranquei. Era o arrancavas! Fiquei atascado. Na noite anterior havia-se formado uma espécie de duna à saída de casa – e, como a pressa foi tanta, não me apercebi disso. Tentei novamente e nada. Mais uma vez e nada. Outra vez e nada. Agora de marcha-atrás. Nada. Agora com travão de mão. Nada. Com travão de mão e marcha-atrás. Nada. Nem para a frente nem para trás. «Mais sujo do que já estou não vou ficar», pensei eu. Saí então do carro, pus-me de joelhos e comecei a escavar com as mãos em concha ao redor dos pneus da frente: primeiro o esquerdo e depois o direito. Retornei ao carro, sacudi a areia da cara, procurei pelas chaves e não as encontrava. Tê-las-ia metido no bolso e elas dele haviam escapulido enquanto escavava? Talvez. Saí novamente, dei duas voltas à viatura mas das chaves nem sinal. Estariam enterradas? Como um cego procura de gatas algo que deixou cair, assim também eu remexia a areia nas imediações donde havia estado a escavar. E, por um golpe de sorte, acabei por encontrá-las. O deslocamento da areia era tal, que nesse curto espaço de tempo encobriu as chaves. De volta ao carro e nova tentativa. Nada. Depois lembrei-me que o senhorio havia-me deixado uma pá, em conjunto com uma vassoura e uma esfregona. Inicialmente não percebi o porquê da pá, mas agora fazia todo o sentido. Procedi da mesma forma, agora com a pá, e voltei a tentar. NADA. Desesperado, pus-me pensativo a olhar para o mar. E foi virado para o mar, a olhar para a “morte da bezerra”, que se fez luz. Evocando os pilotos do Lisboa-Dakar atascados nas dunas do Sahara, vasculhei a vizinhança à procura de duas tábuas da largura de um pneu. Não eram o ideal – largas demenos e compridas demais – mas era o que havia. Voltei à pá, escavei pela terceira vez e coloquei as tábuas em posição. Enfim livre! E a mim, que sempre disseram que isso de passar o dia inteiro a ver Eurosport não iria ser útil para nada!

 

 

Created By: PEDRO MANUEL REIS CAPRICHOSO
Published: 09-06-2009 16:31

Comments

Grande aventura

Isso é que é Pedro. Histórias dessas valem a pena.
Nuno Miguel Várzea at 09-06-2009 16:31

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