País de contradições, uma das primeiras constatações que se faz ao percorrer as ruas de Dacar é, parafraseando a célebre expressão, que ainda que algo seja proibido, “pode-se fazer”. Desde a circulação rodoviária (“disse passadeira? Emissões de dióxido de carbono?”) ao comércio (“vocês sabem quanto custa refrigerar carne?”); passando pelo saneamento (“que invenção maravilhosa o plástico, já viram como, mesmo que o deitemos fora, resiste tanto à agua da chuva como à do mar?”) e acabando na construção civil (“isolamento é para países frios, homem”). As regras são popularmente despromovidas a recomendações e as possibilidades têm como único limite a criatividade de cada um. [Primeira nota mental: (i) as normas só o são enquanto o povo as aceitar como tal; (ii) há que valorizar mais os serviços, o ambiente sadio e a organização que temos em Portugal, mesmo considerando todas as suas fragilidades].
Não obstante, toda a gente vive nesta sociedade aparentemente errática e volátil com uma naturalidade e uma calma desarmantes. A sensação é a de estarmos a observar um maremoto a aproximar-se de uma soalheira praia mediterrânica repleta de veraneantes que, permanecendo despreocupados, com vagar se continuam a dedicar às suas actividades estivais: aquilo que se poderá definir antieticamente como uma confusão tranquila. Não seria, portanto, estranho ouvir-se “Diop, olha que estavas em contramão e bateste naquele carro!”, com a resposta “Paciência…depois resolve-se, Insh’allah”. [Segunda nota mental: é impossível controlar totalmente o nosso dia-a-dia, pelo que não posso deixar que isso seja fonte de angústia, mas sim procurar aproveitar cada momento].
Através da regularidade assaz elevada com que tal expressão árabe – “se Deus quiser” – é proferida podemos explicar tanto esta excessiva passividade/serenidade do senegalês, que se crê à total mercê dos desígnios da autoridade suprema, como o salutar pacifismo generalizado e a internacionalmente reconhecida hospitalidade e simpatia deste povo (autointitulam-se mesmo o país Taranga, ou seja, da arte de bem receber). Se noutros quadrantes a religião já motivou, ou motiva ainda, formas variadas de violência, observa-se o exato inverso no Senegal, sendo reconhecidamente apontada a forte liderança religiosa muçulmana como o grande motor da integração étnica e da paz social que se vivem desde sempre no país, mesmo perante comunidades estrangeiras ou que simplesmente que professam outros credos. [Terceira nota mental: qualquer religião (no caso a muçulmana) é, na sua essência, fonte de harmonia].
Ora, e do ponto de vista de um europeu, é também essa passividade exacerbada que compreendemos enquanto teimosia e orgulho alarmantes quando, por exemplo quando interpelados para fazer algo de uma forma que para nós é mais eficiente ou expedita, que não nos faça perder demasiado do nosso precioso tempo, não o fazem – o que é frequente e consideramos logo o maior obstáculo ao seu desenvolvimento enquanto nação. Porém, agora pondo-nos na sua pele, não será essa uma forma de resistência pacífica à aculturação e neo-colonialismo velados que continuamos a promover? [Última nota mental: (i) é uma forma de arrogância, que deve ser como tal evitada, julgar a acuidade de terceiros à luz de critérios que eles próprios não reconhecem; (ii) o senegalês é, afinal, primo (ainda que mais novo) do português].
Ainda assim, tanto para os defensores da primeira noção, como para quem olhe para o problema com lentes senegalesas, sempre convergiremos na resposta à questão: então e agora?
Agora, “paciência…”